domingo, 27 de julho de 2008

Gênesis


A infinita Eternidade. Uma vastidão desértica sem fronteiras, o grande campo de abrangência desconhecida que compreende o tempo e o espaço, onde prevalece restritamente vácuo e treva. Tudo começou em um pequeno santuário no meio desta imensidão, chamado de Cúpula Absoluta. Era o habitat dos Deuses, também conhecidos pela alcunha de Primórdio, ou Leis: Mecânica, Termologia, Óptica, Onda, Eletricidade, Radioatividade e Química. Detalhes mencionados nas sagradas escrituras, sobre a origem de tais divindades, são escassos – restringindo-se a citá-las como a primeira tentativa de povoar a Eternidade.
No manuscrito, os Deuses eram dotados de extraordinárias habilidades, junto de um altíssimo senso de aprendizado. Providos de inteligência, procuraram novas e criativas formas de usar seus distintos dons. Iguais a crianças desenvolvendo a coordenação motora, alcançaram o pleno domínio das destrezas.
Engenhosos, criaram o ser vivo inicial – uma gigantesca criatura cuja forma tinha parentesco com os atuais cetáceos, ordem de animais marinhos que engloba baleias, botos e golfinhos – nomeado Universo. Era composto do mesmo material da Eternidade, o Vácuo; também denominado Vazio ou Vago. O Universo mantinha-se sustentado pela ação das sete Leis, que lhe serviam de "pilares". Utilizando o interior do animal como palco de testes, os Deuses experimentaram seu criacionismo à vontade.
O trilhamento de forças, movimentos e grandezas que possibilitassem a locomoção no Vago. Estudo do fenômeno de variação do calor. O comportamento de certos pulsos energéticos sinuosos, intitulados "ondas", quando se propagavam nas cercanias da Eternidade. A conduta das cargas elétricas ao liberarem sua energia no Vazio, acarretando correntes luminosas devastadoras. Manuseio de reações atômicas robustas, que mesmo os Deuses temiam. Retalho e amarração de partículas para gerar matéria. E tantos outros ensaios...
Movimento, calor, luz, onda, carga elétrica, energia nuclear, matéria. Invenções brilhantes, sem dúvida. A grande sacada do Universo era seu crescimento constante, que jamais cessava ou reduzia a progressão, expandindo seu tamanho além do visível e enrijecendo sua resistência. Isso permitia experimentos maiores, complexos e arriscados.
Os santos desencadeavam ações que provavelmente pulverizariam a Cúpula Absoluta num único golpe. Em motivo da “baleia vaga” se tratar de um ambiente isolado, as experiências realizadas em seu âmago nunca iriam se perder na Eternidade, servindo de “arquivamento de dados” para as Leis.
Celebrando os maravilhosos resultados dos testes, os santificados estavam próximos de concluir a perfeição, o controle completo do meio, o requinte de suas habilidades – sendo a perfeição o derradeiro sentido na existência de todas as Leis, tal como a felicidade para os atuais humanos.
O único problema era o Universo. Sendo um ser vivo, tinha sentimentos e vontade própria, fato que condenou as Leis. A cria das santidades gerou um ovo em seu centro, o Núcleo da Vida, o qual foi fecundado pelas energias emanadas dos santos, provenientes dos experimentos.
A casca encouraçada do ovo não suportou tamanho poder concentrado no embrião, e terminou por explodir. Deu-se o Big Bang, uma explosão poderosíssima que utilizava o poderio celestial como combustível para deflagrar-se. Estraçalhou os limites do Universo, se alastrando pela Eternidade. A Cúpula Absoluta foi destruída, junto dos Deuses. Milagrosamente o Universo não morreu, aumentando em milhares de vezes suas proporções e radiando Estrelas e Galáxias, que nada mais eram do que sequelas da detonação.
O Deus da Química, ou Adão, único sobrevivente da chacina divina – abrigando-se em rupturas no Vácuo – construiu uma barca com os restos de seus companheiros, saindo numa viajem de colonização. Os dons das divindades destruídas passaram a integrar o Universo, então Adão decidiu fazer um teste final, matar sua última curiosidade. Até que ponto essa incrível criatura, o ser vivo, capaz de derrotar um panteão completo de Deuses, poderia chegar?
Criou 12 Feras, de diferentes cores e formas, chamadas Sesmeiras ou Matriarcas, e as espalhou pelo Universo. Cada Sesmeira tomou o fardo de cuidar da povoação de seu território. O Deus dividiu as Galáxias entre as “filhas”, onde elas deveriam usar a aptidão concedida pelo seu originador para prosperar – a habilidade de germinar outras formas de vida, competência que as tornava Semideuses.
As proles tinham de ser depositadas nas incubadoras intituladas Planetas, abastecidos pelo calor dos Sóis. Estes “ninhos” possuíam a mesma receita das Feras e seres vivos, a Matéria, e cabia as Matriarcas checarem quais Planetas eram habitáveis e quais não equipavam os suprimentos vitais para a sobrevivência duma “massa biológica”.
Uma serpente de asas emplumadas e inimaginável comprimento – cujo corpo prolixo impossibilitava a visualização da cauda – pousou no quadrante da Via Láctea. A grande cobra matriarcal Lilith deparou-se com um terreno infértil, miserável e sem condições ao sucesso da missão. Ou os Planetas localizavam-se mortalmente próximos do Sol, ou morbidamente longe, não havia equilíbrio.
A Sesmeira perdeu o rumo, e no decorrente dia originou-se a desesperança, o desânimo, a aflição e as ideias suicidas, maldições que assombrariam sua prole até o fim dos tempos.
A Fera irmã Samuel, um majestoso corcel negro, chegou aos domínios de Lilith em surto de pânico. A Matriarca estranhou a visita, mas ouviu o consanguíneo. Samuel trouxe uma mensagem alertando sobre certas revoluções no Universo.
No relato do corcel, a Fera irmã Eva havia enlouquecido e degolado o Deus da Química, saindo em seguida numa sangrenta busca para dizimar todas as demais Sesmeiras. Eva se dizia a mais bela e perfeita das crias, por essa razão somente seus genes mereciam florescer. O DNA “inferior e sujo” deveria ser erradicado.
Samuel já estava distante quando a silhueta macabra de Eva vibrou até o último átomo do Sistema Solar. Surgiu a imagem de um feroz cão de pelagem branca, musculosas patas e torso carnudo. A cabeça parecia pertencer a um crocodilo de escamas esbranquiçadas. Descia pela sua nuca uma crina arrepiada e volumosa. Fileiras de garras brilhavam nos seus quatro membros, feito espadas de tocaia.
Lilith, na sua dolorosa crise de existencialismo, não quis fugir. A amargura corrompeu tanto sua alma que ela preferiu ficar esperando a ameaça lhe dar os cumprimentos. O fato é, naquele dado estante, um ódio incomensurável tomou posse de Lilith, que se jogou com violência para cima do invasor.
A serpente emplumada e o serial killer rasgaram a carne um do outro, lançando córregos de sangue no Vazio. Eva abocanhou o fino corpo da cobra e se debateu em frenesi, por pouco não a decepando ao meio. Prosseguiu esfolando as garras na pele do alvo. Lilith enfincou suas presas no pescoço do cachorro e atacou com as asas, que se mostraram ótimas armas de contusão ao golpear agressivamente o intruso.
Quase inconsciente por conta das feridas, a serpente conseguiu trançar o físico em volta de Eva, a prendendo em um abraço letal. O cão esperneou, mas não teve chance quando a pressão monstruosa começou a intricar lentamente seus ossos. Lilith venceu!
Vendo a carcaça comprimida de Eva, a cobra formulou um plano. Arrastou sua ex-irmã a uma posição privilegiada no esquema planetário, onde o cão morto não congelaria no frio nem tostaria na proximidade do Sol. Fez uma abertura na barriga do cadáver e botou seus ovos no intestino de Eva. Quando os bebês nascessem, teriam comida fresca para saciar a fome.
Lilith agarrou a quinta lua de Júpiter, a rachando e despejando o mar contido em suas profundezas no inimigo atenuado. A “recém-inaugurada” incubadora se inundou nas águas, principal fonte de vida dos seres vivos. Não tardou para os ovos eclodirem, e uma fantástica diversidade de formas carnais disseminar-se pelos subterrâneos da Terra, o novo Planeta da Via Láctea.
Logo os seres vivos, animais e vegetais, ganharam os oceanos. Foi questão de tempo para imergirem ao continente, fachos de terra firme que restaram da epiderme de Eva. Entende-se por “ser vivo” toda criatura provida de consciência e habilidade de reprodução, podendo dar continuidade ao seu legado genético.
A Matriarca acompanhou o tal “processo evolutivo” com uma ou outra interferência indireta, apenas aguardando paciente o momento em que seus filhos tocariam o auge da civilização, podendo reconhecer e louvar sua única Mãe, sua exclusiva criadora, sua única Deusa.
Este culto religioso é praticado por grupos de indigentes locais, tendo como centro de adoração um edifício condominial abandonado na zona periférica norte da cidade. Informações sobre tais “missas” ainda em investigação. A religião ganha mais adeptos a cada dia, com quantidades impressionantes de “iniciados”. Apesar das multidões, a seita não parece seguir uma doutrina específica, se restringindo a explicar a origem do mundo. Sendo assim, aparentemente não representa ameaça. Mais detalhes ainda em investigação.

12 comentários:

F. Reoli disse...

Você descreve muito, muito bem esse véu escuro e enevoado que envolve as profundezas da natureza humana... Abraços

Thiers Rimbaud disse...

Senti os personagens da trama, da pandemia. A pandemia como um delírio que assolava a alma do profeta( vc). O profeta descreve seus personagens, figuras comuns da sociedade. O dono do delíro, se remexe na cama, sua cabeça evolui como escola de samba(da vida) e gira, gira...e não consegue parar...alguém pergunta: E agora?

Thiers Rimbaud disse...

contudo ainda é pouco, voltarei praccompletar meu raciocínio.

Caio Tadeu de Moraes disse...

auahuaauaau "Pandemia" mudou de blog Thiers, mas valew pela critica!

Rita Medusa disse...

nossa Caio,fiz uma viagem muito profunda com tuas letras...e submergi inquieta.Muito bom!

Ana Raquel Fernandes disse...

Se Gênesis, através de suas palavras, ganhou essa roupagem inquietante por inteligente e fantástica e poética e verossímil... o que esperar então de Apocalipse? Rs
Esperar ansiosamente, é o que farei!
;)
Gênio das palavras...

Robson Gundim disse...

Realmente amigo Caio eu não esperava menos... E que conto, hein? SEM PALAVRAS, e eu - mesmo que soubesse, assim como você, explicar de cabo a rabo todas as minhas reflexões - não sei se sairia daqui ainda hoje.
Não se trata somente de uma trama, não... Há misticismo no ar, fantasia, ação, história, ou para encurtar: CONTEÚDO. E lhe digo com sinceridade, este foi um dos poucos contos que li que cava fundo nas informações. No começo me lembrei das obras de HP Lovecraft, a citação dos peixes, botos, golfinhos, etc...
Bem, meu amigo, a solução é reler esta maravilha para descobrir grandes significados, e obviamente esperar pelo grande lançamento de "Apocalipse" (claro, quero minha cópia autografada).
Parabens cara, você evolui sim, (só não sei se é como escola de samba, pois nunca ouço, rsrsrs)

Abração!

Duda Falcão disse...

Olá! Inciar o blog com um conto de origem, desenvolver mitos foi uma sacada muito boa. Gosto ainda mais quando você aproxima o mito da criação a uma seita. Uma seita que a princípio parece inofensiva.
Nas histórias que leio, tenho uma mania de já ficar pensando em continuações...
Seria bem legal conhecermos um pouco mais dessa seita, desses deuses e de seus demônios...
Aproveito para mencionar o que o outro camarada, percebeu muito bem, é possível visualizar algo do Lovecraft. Quem sabe esses seres não estão aí vindos de um tempo antigo prontos para saciar sua sede de sangue e do medo dos fracos humanos.
Um abraço!

Robson Gundim disse...

Engraçado... Vagando a internet - esta máquina que mais controla o homem do que é controlada rsrsrs - dei uma lida sobre os acontecimentos fatais que têm ameaçado a nossa terra, sobre o calendário maia, as desgraças geradas pela própria cobiça do homem e a lenda do possivel "fim" no dia 12/12/12 ou 21/12/12...
Não sei porque, mas me recordei deste conto. Nunca se sabe... Para se pensar no fim, tem de se pensar num "possivel" começo...
Caio, se Einstein lesse esse trabalho, no mínimo ele ficaria puto da vida por saber que tua mente é foda de boa... Quem sabe até ele não bolasse algo em cima disso ou, melhor ainda, te convidasse para bater um papo e talvez arquitetar um algo que fosse capaz de salvar o nosso planeta!

Abraço.

Heitor disse...

Não creio que este modo de pensar filosófico e extraordinário não lhe renda muitos fãs e leitores, continue assim cara vc é cool!

Mario Carneiro Jr. disse...

Opa, blog novo e nem avisa, vagal? Depois vou ler teu conto novo. Por enquanto, vim fazer um convite.

Não sei se vc é de São Paulo, mas se for, está convidado para o lançamento do livro que estou participando, o Galeria do Sobrenatural. Detalhes do evento no endereço abaixo:

http://luamortal.blogspot.com/2009/10/nova-participacao-literaria-dessa-vez.html

Ah, também coloquei um conto novo na Lua Mortal. Qdo tiver afim, dá uma passadinha por lá.

Abraço!

Angela Nadjaberg Ceschim Oiticica disse...

Uma profunda e metafísico-anárquica visão da Criação. Numa linguagem pessoal; única; altamente criativa e original. Eu ainda não havia lido algo sobre o Gênesis escrito desta maneira.

Lembra Darwin e a teoria da Evolução das Espécies numa outra liguagem. Uma meta linguagem. Ponto em comum - a vida na Terra começou na água.

Fantástico!